Gosto do que é natural
4º IVsup D5 E4
Modalidade: tradicional
Tipo de via: principal
Tipo de escalada predominante: agarras e aderência
Extensão: 350 metros
Descrição: Abaixo, relato do conquistador Felipe Dias:
"Quem já fez a travessia da Serra Fina, com certeza, indo para o Pico dos Três Estados, já avistou aquelas imensas paredes no vale que desce para o estado de SP e se perguntou: - "alguém já subiu aquilo lá?". Já ouvi muitos comentários a respeito disso. E, desde que avistei aquele lugar pela primeira vez, não o tirei mais da minha cabeça. A Serra Fina sempre teve uma importância ímpar em minha vida. Visitei alguns outros picos quando criança, levado por meu pai e familiares que já praticavam montanhismo. Mas considero minha primeira experiência, assim, intensa, a primeira subida à Pedra da Mina, aos 15 anos. Ali criei a noção do ambiente inóspito e dos desafios a se superar. E, desde então, tenho em mim um carinho particular por aquele lugar.
Foram algumas investidas para tentarmos acessar as paredes por baixo, subindo por Queluz - SP. Aquele vale é algo amedrontador, completamente fechado por vegetação absurdamente densa, bambus trançados em meio a blocos de rocha soltos rolados das imensas escarpas rochosas do vale.
Assim, desistimos da ideia do acesso por baixo e começamos a cogitar fazer o que imaginávamos ser o mais complicado, que seria acessar as cristas das paredes pelo Vale do Ruah, vindo pela trilha da Pedra da Mina.
Mas, como tudo na Serra Fina, isso não seria nada, nada fácil. A trilha da Pedra da Mina já é conhecida por sua intensidade, por demorar de 6 a 8 horas para se chegar ao cume. E nós teríamos de andar muito mais do que só ao cume. Cortamos o peso como pudemos. Não levamos barraca, comida contada para 5-6 dias, equipamento de escalada reduzido ao máximo. Mesmo assim, todo o equipamento contabilizou mais ou menos 27 kg em cada mochila. Começamos em uma quarta feira, saímos no início da tarde, para a Pedra da Mina, nosso primeiro bivaque.
Chegamos já à noite, muito tranquila por sinal. Levantamos as tralhas e cruzamos o Vale do Ruah. Dali em diante, sem trilhas. A partir dali, tudo era desconhecido. Passamos por alguns picos na crista, sem nome, apesar de superarem os 2500 m. Muitos destes pareciam realmente nunca terem sido visitados. Um deles inclusive era um tanto técnico, com uma passagem bem exposta em rocha para chegar ao cume, ruim de se fazer de mochila.
Após um tempo, tivemos nossa primeira vista para as paredes. O que era aquilo! Absurdamente grandes, ficamos sem palavras. Já começamos a colocar em prática nosso plano de descer até a base, retirando as coisas da mochila e passando pro Haul Bag (saco de PVC resistente para levar o equipamento durante a escalada). Pela carta topográfica, haveria uma nascente bem na base das paredes. Por isso, para aliviar o peso, descemos com pouca água.
Perfeito: armamos o primeiro rapel, abandonando um pedaço de corda, e descemos. Batemos no fundo da canaleta, ali, completamente repleta de vegetação e bambu trançado. Não vimos água inicialmente, mas achamos que ela estaria um pouco mais abaixo. E assim foi, 2, 3, 4, 5 rapéis pela terrível canaleta, arrastando os equipamentos pesados pelas pedras e pela vegetação, e nenhum sinal de água, que, embora escorresse em alguns pontos pela pedra, não juntava na sua base.
Começamos a nos preocupar, pois já caía a noite e já havíamos descido mais de 200 metros pela canaleta, com nossa única saída, a escalada da parede. Foi quando, já quase pelas dez da noite, encontramos o campo de bromélias e algumas árvores que poderíamos armar nossa rede. Não restava outra opção. Coletamos água das bromélias, quase 2 litros, e armamos acampamento onde pudemos. Dormimos na base de onde achamos que seria a melhor opção para a via, na parte maior da parede.
Na manhã seguinte, cogitamos a hipótese de descer quase 1 km pela canaleta, até onde passava o rio maior, para pegar água. Tentamos descer aos poucos, mas era muito, muito difícil.
Caímos na real de que, se fôssemos até o rio, provavelmente não conseguiríamos voltar pra escalada em tempo hábil. Assim, coletamos o que pudemos das bromélias, uns 8 litros no total, filtramos, tratamos com cloro e fervemos esta água. Desta maneira, teríamos o suficiente pra escalada.
Entramos na parede na nossa primeira investida. Vimos uma saída com possibilidade em móvel, o Vinícius guiando neste ponto. Depois de 30 metros de via, batemos uma proteção. O Vinícius continuou guiando, num veneno desgraçado, pois aquela parte da pedra era lisa ou podre.
Sentou em um Talon e um Cliff quase quebrando, e bateu mais um furo, mas na posição ruim não conseguiu terminar e desceu na broca mesmo, já no escuro. Resgatamos os equipamentos, e vimos que não teríamos condição de fazer a via ali, visto que era uma parede lisa, embora linda, vertical e com boas agarras, não haveria chance de colocação em móvel, e como só levamos 12 chapas e um batedor manual, não teria como terminar aquela via.
Desolados, recolhemos tudo e já começamos a pensar em como sair daquele calabouço. O visual, no entanto, era maravilhoso. A canaleta é cercada por paredes, torres negativas cheias de fendas. A vista para o vale das cruzes e o imponente Pico do Cabeça de Touro é espetacular, algo meio Himalaia! Mais de 2000 m de desnível, um cenário incrível.
Mas, naquela hora isso não importava muito, tínhamos de achar nossa fuga. Foi quando, quase naturalmente, vimos essa linha na parede. Esta, por sua vez, era menos vertical, mais fraturada pra proteções em móvel e intercalava lances em rocha com touceiras de dama-do-abismo, onde poderíamos ter algumas proteções, mesmo que psicológicas.
Entrei na via sem saber pra onde iríamos. Fiz a primeira cordada, já de uns 50 metros, passando bonitos lances em rocha com as touceiras. Montei a parada em uma laca e reboquei o Vinícius e o porco (haul bag).
Bem, dali seguimos, revezando as guiadas e as rebocadas. Quando na terceira cordada, montei uma base móvel e comecei a rebocar o porco. Havia muitas "bocas" e tetos naquela parte da parede, o que fazia o porco entalar de 5 em 5 metros. Em uma dessas horas, eu já sem forças de tanto puxar peso, ele entalou bonito e não saía de jeito nenhum. O Vinícius estava uns 20 metros acima de mim. Ficando muito frio e anoitecendo, entrei em parafuso. Puxava aquele porco com toda minha raiva, em agonia. Ficamos ali mais de 2 horas, naquela parada em móvel.
Colocando uma pressão absurda no sistema de polias, a retinida só esticava sem nada do porco subir, e eu ali no medo de a coisa toda estourar!
O Vinícius, por muita sorte, achou uma pequena fenda horizontal, montou um rapel e foi me ajudar... Puxamos a carga pra todos os lados e nada dela desentalar. Foi quando peguei um pedaço de corda que sobrava, desci até ele e soltei o danado. Pra nossa agonia maior naquele momento, uma das garrafas de água estourou e molhou tudo dentro do porco (ainda bem que o que não podia molhar estava bem protegido).
Achamos estar sem água naquela hora, mas, rebocando, vimos que ainda tinha uma. Que alívio!
Entramos em êxtase com aquele litro de água cheia de matéria orgânica (essa garrafa ainda não tinha sido tratada). Dali chegamos ao platô em que passaríamos a noite - bem confortável por sinal.
Na manhã seguinte, tínhamos menos de 200 ml de água para cada um. Sabíamos que tínhamos que sair dali de qualquer maneira e rápido! Foi quando a via foi se demonstrando, quase espiritualmente, mentalmente se materializava a cada enfiada. Colocamos mais 3 enfiadas de 50 metros, sendo o final praticamente uma caminhada até o cume. Conseguimos! Naquele momento, já estávamos tão fracos e sedentos, que mal comemoramos o cume. Já juntamos tudo como pudemos e preparamos para mais algumas horas até o vale do Ruah, onde haveria água limpa, fresca e abundante.
Esta, para mim, foi uma das horas mais difíceis. Já apresentávamos sinais claros de desidratação. Eu, em um momento, em uma das subidas dos picos da crista, quase desmaiei. O Vinicius, logo atrás, me deu o embalo que precisava, juntamos forças novamente e andando mais um pouco, vimos água escorrendo de uma pedra. Fomos de boca! hehe.... Lambíamos a pedra que nem um picolé de limão. Já mais motivados, terminamos de chegar até o vale, onde bebemos MUITA água e nos recuperamos.
Ali sim pareceu o final de tudo... Ali, sim, foi a conquista além da parede, de nossa integridade física e mental. O Vinícius tinha compromissos na cidade na manhã seguinte, por isso precisou descer neste mesmo dia ainda. Eu optei por mais um bivaque, desta vez no cume da Pedra da Mina. Eu precisava visitá-la...
Minha grande mãe espiritual. Agradeci muito à grande mãe da serra, este privilégio que ela nos deu. Esta lição, esta experiência. Eu tinha de dormir, pelo menos uma noite, em seu colo. Noite fria esta! E, assim, na tarde do sexto dia, chego de novo em casa, onde nada mudou na pequena Itanhandu, só em nós."
Felipe Dias
Fonte: http://www.brasilvertical.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=355:conquistando-as-paredes-da-serra-fina&catid=36:geral&Itemid=60
Data da conquista: 06/2013
Conquistadores (em ordem alfabética):
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